As Bordas de uma escritora
É importante iniciar criando bordas para que nada escape. Se tudo transbordar de todas as formas, resta pouco para ser colocado em palavra. E a literatura é aquilo que resta. É um resto que persiste.
Talvez a questão mais complicada seja estabelecer, com alguma rigidez, estas bordas. Badiou diz que um filósofo precisa ser amante da poesia, um militante político, mas também deve assumir que o pensamento nunca é dissociável das violentas peripécias do amor. Penso que as minhas bordas sejam muito parecidas.
Escrever
Poderia dividir a minha escrita em dois períodos:
- Invisível: é o período mais longo, em que absorvo coisas e pessoas;
Sobre o período invisível, poderia acrescentar: não escrevo apenas quando escrevo. Escrevo quando leio. Escrevo quando estou num ato político. Escrevo quando amo. Não existe o fora do escrever. O escrever é a partida e a travessia.
- Visível: é o período mais curto, em que dou forma ao que absorvi.
Sobre o período visível, poderia acrescentar: apenas escrevo.
Minha Rotina
Não acredito em inspiração; mas em método. Acordo todos os dias às 7h. É um trabalho duro, disciplinado, diário e que só produz algum resultado através da persistência. Nas primeiras horas do dia, apenas leio ou assisto a documentários ou filmes. Em geral, sobre algum tema relacionado ao livro que estou escrevendo. Quando escrevi o Sem Importância Coletiva, assisti a vários documentários sobre Pripyat, a cidade fantasma de Chernobyl, na Ucrânia. Uma cidade onde tudo permanece exatamente como em abril de 1986 – mês do acidente nuclear de Chernobyl. Hoje, estou lendo os Escritos Políticos, do Maurice Blanchot, além de assistir a filmes e documentários políticos para terminar O Homem Vencido, meu terceiro livro.
Depois das 12h, escrevo. Não escrevo apenas sobre o que absorvi no período da manhã, é sempre o resultado de um processo muito maior.
É como naquela história contada pelo Picasso: “estava sentado numa praça e uma moça perguntou se eu podia desenhá-la. Em menos de um minuto, terminei o desenho e disse: ‘é tanto’. Era uma quantia muito alta e a moça reagiu: ‘mas você não levou nem um minuto para fazer o desenho’. Ao que respondi: ‘moça, eu levei a vida inteira para fazer este desenho’”.
A literatura se confunde com a minha vida. É o resto daquilo que vivenciei e do que gostaria de experimentar na palavra sem vivenciar. Quando o resto toma forma, me sinto capaz de suportar coisas que não poderia, como a violência da aproximação e do afastamento das pessoas.
No entanto, a minha rotina não termina quando o resto toma forma. Mas quando exponho este resto ao olhar do outro. O leitor é a chegada.
Daniela Lima é escritora e jornalista. Autora de Anatomia (Multifoco, 2012) e Sem Importância Coletiva (e-Galáxia, 2014). Teve contos traduzidos para inglês e espanhol pela revista Buenos Aires Review. No Brasil, contribui para a revista Carta Capital, Revista da Fapesp e Instituto Moreira Salles.